sábado, 10 de abril de 2010

POMO

Da vida só tem substância
a casca e o caroço.
No meio só tem amido,
embromações do carbono.

Porém todo o gosto reside
nessa carne intermediária,
sem valor alimentício,
sem realidade, sem nada.

É nela que os dentes encontram
o que os mantém afiados:
com ela é que a língua elabora
a doce palavra.

Paulo Henriques Britto in Mínima Lírica

(Duas Cidades, 1989 – Coleção Claro Enigma).


terça-feira, 30 de março de 2010

Testamento

Disse: Creio na poesia, no amor, na morte,
e por isso mesmo creio na imortalidade. Escrevo um verso,
escrevo o mundo; existo; existe o mundo.
Da ponta do meu dedo mínimo corre um rio.
O céu é sete vezes azul. Esta pureza
é de novo a primeira verdade, a minha última vontade.

Giánnis Ritsos

Antologia de Giánnis Ritsos,
Fora do Texto

sábado, 27 de março de 2010

Caso Você Morra, Um Aviso

se amanhã por (des) ventura você morrer
não espere de mim lágrimas
não espere de mim tristeza
não espere que eu saia feito louco
pichando os muros da cidade
não espere nada de mim
se alguém vier me consolar
com o olhar enlutado
tenho na ponta da língua
o velho jargão: "A vida continua..."
eu continuo na vida
e este continuar-na-vida é o quanto me basta
talvez eu vá à ultima sessão de cinema
e acabe dormindo na poltrona como sempre
não vou mudar os meus hábitos
nenhuma morte até agora mudou os meus hábitos
com a sua não vai ser diferente
prometo não parar de fumar
prometo não parar de beber
prometo continuar a mentir
caso eu tenha algum dinheiro
faço uma viagem - vou ver o mar
que há tanto tempo não vejo
e embarco a sua lembrança
num qualquer navio de bandeira estrangeira
quando eu regressar à casa
aí sim penso o que vou fazer de mim
mas não fique na esperança
que eu venha a fazer grande coisa
não tenho mais tempo pra grandes coisas
pode ser que eu apague você da memória
mas não descarto a possibilidade de adoecer
talvez eu me dedique aos animais
talvez eu tome lições de piano
só pra aprender a tocar villa lobos
existe ainda a possibilidade remota
de eu me trancar num mosteiro
mas o mais provável mesmo
é que eu perca de vez o juízo
mude os móveis da sala
me apaixone pela vizinha que nunca teve ninguém
me case com ela
e acabe com ela os meus dias
mais ou menos feliz para sempre

Júlio Saraiva

http://currupiao.blogspot.com

segunda-feira, 22 de março de 2010

NÃO SE DEVE…

Não se deve deixar os intelectuais brincar com os fósforos

Porque, meus senhores, quando o deixam sozinho

O mundo mental meus senhores

Não é nada brilhante

E mal se apanha sozinho

Age arbitrariamente

Erigindo a si próprio

Alegada e generosamente em honra dos trabalhadores da

construção civil

Um auto-monumento

Não é demais insistir, meus senhores

Quando o deixam sozinho

O mundo mental

Mente

Monumentalmente.

Jacques Prévert

Paroles

domingo, 21 de março de 2010

A Língua Portuguesa

Esta língua que eu amo

Com seu bárbaro lanho

Seu mel

Seu helénico sal

E azeitona

Esta limpidez

Que se nimba

De surda

Quanta vez

Esta maravilha

Assassinadíssima

Por quase todos os que a falam

Este requebro

Esta ânfora

Cantante

Esta máscula espada

Graciosíssima

Capaz de brandir os caminhos todos

De todos os ares

De todas as danças

Esta voz

Esta língua

Soberba

Capaz de todas as cores

Todos os riscos

De expressão

(E ganha sempre à partida)

Esta língua portuguesa

Capaz de tudo

Como uma mulher realmente

Apaixonada

Esta língua

É minha Índia constante

Minha núpcia ininterrupta

Meu amor para sempre

Minha libertinagem

Minha eterna

Virgindade.


Alberto de Lacerda,

Oferenda I,

IN-CM, 1984

quinta-feira, 11 de março de 2010

JUNTO AO SOL, O RIO

Gaivotas sobrevoam terraços
E barcos antigos ainda viajam
- Perfeitos para o sol e o frio
Para o pensamento não vigiado.
(Paira, a par do motor,
um rumor de extinção).
Notícia não há sequer de mar
É um rio
( Um leito largo)
Um barco à medida:
Mesas no convés
Frutos ao fundo
(Laranja contra azul, tem o céu
novas nuvens).
Presente ano afasta-se em beleza
Tempo novo espera no cais
Procura habitação
A tempo inteiro ao sol

Maria Teresa Duarte Martinho,
Telhados de Vidro N.º 13,
Averno

quarta-feira, 10 de março de 2010

Aceitação

À parte o céu sem pássaros
os nomes molhados das ruas
as ilhas de outrora submersas todas
como uma lição esquecida de geografia
à parte a minha língua perdida para sempre
vocábulos traduzidos com ajuda de um dicionário
sem história sem terra sem água
à parte a quase dor
do meu terceiro exílio
isto vai.

Aris Alexandrou,
Telhados de Vidro n.º13,
Averno