terça-feira, 15 de dezembro de 2009

O ANTI-PÁSSARO

Um pássaro
seu ninho é pedra

seu grito
metal cinza

dói no espaço
seu olho.

Um pássaro
pesa
e caça
entre lixo
e tédio.

Um pássaro
resiste aos
céus. E perdura.
Apesar.

Orides Fontela,

Teia (1996)

ELEGIA (I)

Mas para que serve o pássaro?
Nós o contemplamos inerte.
Nós o tocamos no mágico fulgor das penas.
De que serve o pássaro se
desnaturado o possuímos?

O que era vôo e eis
que é concreção letal e cor
paralisada, íris silente, nítido,
o que era infinito e eis
que é peso e forma, verbo fixado, lúdico

O que era pássaro e é
o objeto: jogo
de uma inocência que

o contempla e revive
— criança que tateia
no pássaro um
esquema de distâncias —

mas para que serve o pássaro?

O pássaro não serve. Arrítmicas
brandas asas repousam.

Orides Fontela
Transposição (1969)

A imensa alegria de servir

Toda natureza é um desejo de serviço.
Serve a nuvem, serve o vento, serve o sulco.
Onde houver uma árvore para plantar,
planta-a tu;
onde houver um erro para corrigir,
corrige-o tu;
onde houver uma tarefa que todos recusem,
aceita-a tu.

Sê quem tira
a pedra do caminho,
o ódio dos corações
e as dificuldades dos problemas.

Há a alegria de ser sincero e de ser justo;
há, porém, mais do que isso,
a imensa alegria de servir.

Como seria triste o mundo
se tudo já estivesse feito,
se não houvesse uma roseira para plantar,
uma iniciativa para lutar!

Não te seduzam as obras fáceis.
É belo fazer tudo
que os outros se recusam a executar.

Não cometas, porém, o erro
de pensar que só tem merecimento executar
as grandes obras;
há pequenos préstimos que são bons serviços:
enfeitar uma mesa.
arrumar uns livros.
pentear uma criança.

Aquele é quem critica,
este é quem destrói;
sê tu quem serve.

Servir não é próprio dos seres inferiores:
Deus, que nos dá fruto e luz,
serve.
Poderia chamar-se: o Servidor.
E tem os seus olhos fixos nas nossas mãos
e pergunta-nos todos os dias:
- Serviste hoje?

Gabriela Mistral

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

VIDA DE FOGO

Desde a minha juventude desprezei a prudência,
qualquer forma evidente de cautela e rotina.
Gritar onde soasse a voz dos cobardes.
Somente arder e sentir a intensidade
e lançar-me aos abismos do perigo,
ouvindo-me lutar na sua vertigem.
Amar a vida e ser pródigo no seu esbanjamento,
para assim inventariá-la com recordações veementes.
Vida como uma amada deslumbrante,
a quem é necessário seduzir,
beijar até ao mais íntimo da alma,
para morrer, vivendo no seu delírio,
na sua esbelta juventude, no seu contágio.
Vida que se submerge no irrepetível
e, iluminada e fértil, se derrama
na sua alegria imemorial, profunda,
elevando-se, ali, sobre o seu canto,
para trazer os tesouros do puro calafrio.

Justo Jorge Padrón,
Extensão da Morte,
Teorema

sábado, 5 de dezembro de 2009

PALAVRAS FUNDAMENTAIS

Faz com que a tua vida seja
sino que repique
ou sulco onde floresça e frutifique
a árvore luminosa da ideia.
Alça a tua voz sobre a voz sem nome
de todos os demais, e faz com que ao lado
do poeta se veja o homem.

Enche o teu espírito de lume;
procura as eminências do cume
e, se o esteio nodoso do teu báculo
encontrar algum obstáculo ao teu intento,
sacode a asa do atrevimento
perante o atrevimento do obstáculo.

Nicolás Guilhén,
Antologia Poética,
Selecção, tradução e notas
de Albano Martins,
Campo das Letras

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

O Corredor na penumbra

Sentara-se ali muitas vezes
durante uma temporada
como se pudesse dispensar-se de tudo
embora sem deixar transparecer

os trabalhos interrompidos, os recursos, partidas
melhores do que aquela
não tinha a certeza se iria a tempo dessa verdade

Que seguraria ele se pudesse?

Há um momento sem explicação
em que a porta de casa nos resiste
os aspectos habituais debatem-se
em inquietante estranheza
e quando atravessamos o corredor na penumbra
os espelhos não nos reconhecem

José Tolentino Mendonça,
O VIAJANTE SEM SONO,
Assírio & Alvim, 2009
és o dia do pêndulo, o instante
rasurado, és a hora

em que vejo chegar o lobo
pensando que é cão de guarda.

Renata Correia Botelho
Um Circo no Nevoeiro,
Averno, 2009