terça-feira, 15 de dezembro de 2009

O ANTI-PÁSSARO

Um pássaro
seu ninho é pedra

seu grito
metal cinza

dói no espaço
seu olho.

Um pássaro
pesa
e caça
entre lixo
e tédio.

Um pássaro
resiste aos
céus. E perdura.
Apesar.

Orides Fontela,

Teia (1996)

ELEGIA (I)

Mas para que serve o pássaro?
Nós o contemplamos inerte.
Nós o tocamos no mágico fulgor das penas.
De que serve o pássaro se
desnaturado o possuímos?

O que era vôo e eis
que é concreção letal e cor
paralisada, íris silente, nítido,
o que era infinito e eis
que é peso e forma, verbo fixado, lúdico

O que era pássaro e é
o objeto: jogo
de uma inocência que

o contempla e revive
— criança que tateia
no pássaro um
esquema de distâncias —

mas para que serve o pássaro?

O pássaro não serve. Arrítmicas
brandas asas repousam.

Orides Fontela
Transposição (1969)

A imensa alegria de servir

Toda natureza é um desejo de serviço.
Serve a nuvem, serve o vento, serve o sulco.
Onde houver uma árvore para plantar,
planta-a tu;
onde houver um erro para corrigir,
corrige-o tu;
onde houver uma tarefa que todos recusem,
aceita-a tu.

Sê quem tira
a pedra do caminho,
o ódio dos corações
e as dificuldades dos problemas.

Há a alegria de ser sincero e de ser justo;
há, porém, mais do que isso,
a imensa alegria de servir.

Como seria triste o mundo
se tudo já estivesse feito,
se não houvesse uma roseira para plantar,
uma iniciativa para lutar!

Não te seduzam as obras fáceis.
É belo fazer tudo
que os outros se recusam a executar.

Não cometas, porém, o erro
de pensar que só tem merecimento executar
as grandes obras;
há pequenos préstimos que são bons serviços:
enfeitar uma mesa.
arrumar uns livros.
pentear uma criança.

Aquele é quem critica,
este é quem destrói;
sê tu quem serve.

Servir não é próprio dos seres inferiores:
Deus, que nos dá fruto e luz,
serve.
Poderia chamar-se: o Servidor.
E tem os seus olhos fixos nas nossas mãos
e pergunta-nos todos os dias:
- Serviste hoje?

Gabriela Mistral

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

VIDA DE FOGO

Desde a minha juventude desprezei a prudência,
qualquer forma evidente de cautela e rotina.
Gritar onde soasse a voz dos cobardes.
Somente arder e sentir a intensidade
e lançar-me aos abismos do perigo,
ouvindo-me lutar na sua vertigem.
Amar a vida e ser pródigo no seu esbanjamento,
para assim inventariá-la com recordações veementes.
Vida como uma amada deslumbrante,
a quem é necessário seduzir,
beijar até ao mais íntimo da alma,
para morrer, vivendo no seu delírio,
na sua esbelta juventude, no seu contágio.
Vida que se submerge no irrepetível
e, iluminada e fértil, se derrama
na sua alegria imemorial, profunda,
elevando-se, ali, sobre o seu canto,
para trazer os tesouros do puro calafrio.

Justo Jorge Padrón,
Extensão da Morte,
Teorema

sábado, 5 de dezembro de 2009

PALAVRAS FUNDAMENTAIS

Faz com que a tua vida seja
sino que repique
ou sulco onde floresça e frutifique
a árvore luminosa da ideia.
Alça a tua voz sobre a voz sem nome
de todos os demais, e faz com que ao lado
do poeta se veja o homem.

Enche o teu espírito de lume;
procura as eminências do cume
e, se o esteio nodoso do teu báculo
encontrar algum obstáculo ao teu intento,
sacode a asa do atrevimento
perante o atrevimento do obstáculo.

Nicolás Guilhén,
Antologia Poética,
Selecção, tradução e notas
de Albano Martins,
Campo das Letras

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

O Corredor na penumbra

Sentara-se ali muitas vezes
durante uma temporada
como se pudesse dispensar-se de tudo
embora sem deixar transparecer

os trabalhos interrompidos, os recursos, partidas
melhores do que aquela
não tinha a certeza se iria a tempo dessa verdade

Que seguraria ele se pudesse?

Há um momento sem explicação
em que a porta de casa nos resiste
os aspectos habituais debatem-se
em inquietante estranheza
e quando atravessamos o corredor na penumbra
os espelhos não nos reconhecem

José Tolentino Mendonça,
O VIAJANTE SEM SONO,
Assírio & Alvim, 2009
és o dia do pêndulo, o instante
rasurado, és a hora

em que vejo chegar o lobo
pensando que é cão de guarda.

Renata Correia Botelho
Um Circo no Nevoeiro,
Averno, 2009

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Paga-me um café

I.
A casa onde às vezes regresso é tão distante
da que deixei pela manhã
no mundo
a água tomou o lugar de tudo
reúno baldes, estes vasos guardados
mas chove sem parar há muitos anos

Durmo no mar, durmo ao lado de meu pai
uma viagem se deu
entre as mãos e o furor
uma viagem se deu: a noite abate-se fechada
sobre o corpo

Tivesse ainda tempo e entregava-te
o coração

II.
Paga-me um café e conto-te a minha vida.

O inverno avançava
nessa tarde em que te ouvi
assaltado por dores
o céu quebrava-se aos disparos
de uma criança muito assustada
que corria
o vento batia-lhe no rosto com violência
a infância inteira
isso me lembro

Outra noite cortaste o sono da casa
com frio e medo
apagavas cigarros nas palmas das mãos
e os que te viam choravam
mas tu não, tu nunca choraste
por amores que se perdem

Os naufrágios são belos
sentimo-nos tão vivos entre as ilhas, acreditas?
e temos saudade desse mar
que derruba primeiro no nosso corpo
tudo o que seremos depois

«Pago-te um café se me contares
o teu amor».

III.
A incompreendida figura do amor
a céu coberto sem que se exprima
rodeamo-nos de vinganças, medidas, ardis
e enchemos os livros da ardente ausência
de nós próprios

Ao entardecer corremos
ao pontão sobre o mar
e a vida só se parece
com alguma coisa que sabemos

IV.
A verdade que pertence aos gestos
ao menor dos nossos gestos
antes de chegarem palavras que nos socorram
às vezes é a verdade de um amor

Escassos propósitos as palavras
para o abalo de terra
em que se tornou de repente
a nossa vida

Um sofrimento não nos larga
a manhã parece-se estranhamente
com outro lugar
saberemos então que significam
os intervalos do silêncio
onde o silêncio é maior

V.
Estendi a mão por qualquer coisa inocente
uma pedra, um fio de erva, um milagre
preciso que me digas agora
uma coisa inocente

Não uses palavras
qualquer palavra que me digas há-de doer
pelo menos mil anos
não te prepares, não desejes os detalhes
preciso que docemente o vento
e longínquo e o próximo
espalhe o amor que não teme

Não uses palavras
se me segredas
aquilo que no fundo das nossas mentiras
se tornou uma verdade sublime

VI.
Atravessei contigo a minuciosa tarde
deste-me a tua mão, a vida parecia
difícil de estabelecer
acima do muro alto

Folhas tremiam
ao invisível peso mais forte

Podia morrer por uma só dessas coisas
que trazemos sem que possam ser ditas:
astros cruzam-se numa velocidade que apavora
inamovíveis glaciares por fim se deslocam
e na única forma que tem de acompanhar-te
o meu coração bate

VII.
há uma altura, creio
um dia em que se acorda
e se percebe tudo:
a traição do acaso
que dispersa a folhagem do jardim,
a solidão inacessível dos desertos,
a ferocidade da natureza
em certas estações,
essa espécie de errância
que pertence ao silêncio
mais que a qualquer palavra

VIII.
O amor é uma noite a que se chega só.

José Tolentino Mendonça,
Baldios,
Assírio & Alvim

domingo, 15 de novembro de 2009

Os Objectos

Os objectos inanimados estão sempre em ordem e nós infelizmente não temos nada a censurar-lhes. Nunca vi uma poltrona trocar de pé ou uma cama erguer-se nas pernas traseiras. E as mesas, mesmo quando estão fatigadas, não se põem de joelhos. Suspeito que os objectos se comportam assim por razões pedagógicas: para nos censurarem constantemente pela nossa instabilidade.

Zbigniew Herbert,
Escolhido pelas Estrelas,
Assírio & Alvim, 2009

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

POEMA ESQUECIDO NA MADRUGADA

O homem teve a impressão de crescer

A noite recuava diante dele
as estátuas reencontravam
o seu primeiro sorriso
e a cidade dava o poder àquele
que fizesse cantar as colunas de mármore

Não sei porquê, diz ele,
ouço bater o meu coração
sobre os lábios dos outros...

E fez-se um momento em que
tudo parou

Jean Paul Mestas,
Poema Esquecido na Madrugada,
Ulmeiro

SOBRE A TRADUÇÃO DE POESIA

Como um abelhão desajeitado
pousa numa flor
vergando o frágil caule
abre caminho com os cotovelos
através duma fileira de pétalas
através das folhas de um dicionário
quer chegar
onde se concentram a fragrância e a doçura
e embora esteja constipado
e sem gosto
continua a tentar
até que a cabeça choca
contra o pistilo amarelo

e não consegue ir mais longe
é tão duro
forçar a coroa
até chegar à raiz
por isso levanta voo
emerge pavoneando-se
zumbindo:
eu estive lá
e aqueles
que não acreditam nisso
olhem para o seu nariz
amarelo de pólen

Zbigniew Herbert
Escolhido pelas Estrelas,
Assírio & Alvim

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Tattoo

What once was meant to be a statement—
a dripping dagger held in the fist
of a shuddering heart—is now just a bruise
on a bony old shoulder, the spot
where vanity once punched him hard
and the ache lingered on. He looks like
someone you had to reckon with,
strong as a stallion, fast and ornery,
but on this chilly morning, as he walks
between the tables at a yard sale
with the sleeves of his tight black T-shirt
rolled up to show us who he was,
he is only another old man, picking up
broken tools and putting them back,
his heart gone soft and blue with stories.

Ted Kooser

in Delights & Shadows, Copper Canyon Press, Port Townsend, WA 2004

terça-feira, 27 de outubro de 2009

A TARDE

Nesta desaceleração
espero que os dias corram iguais,
uniformes e sem resistência.
Procuro de cada mistério
entender o mais simples.
Fico pelo que é mais rente,
mais sólido, com menos construção.

Já não chega ter os horários,
as entregas e as rotinas,
para aceitar o ritmo de furo lento
da vida. Mais próximo cresce o detalhe.
É mais precisa a dúvida.

Cai a tarde e a pausa continua
e com ela expira o natural desejo
de um prazer, um apetite pela
diagonal de luz que vai dividindo
o espaço, a marca invisível
que fica de mais um dia.

Rui Miguel Ribeiro
in XX Dias, Averno, 2009

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

PRIMEIROS SOCORROS

As novas técnicas de salvação:
salvação pelo riso,
salvação pelo medo,
salvação pela palavra,
salvação pelo amor e pela amizade,
salvação pelo risco.

De todas, nenhum sobrevivente.
Veneram-se, em episódios diários, os heróis;
os incompreendidos aumentam de número,
queixam-se da falta de dentes,

nascem prematuros os filhos
dos sonhos aos pesadelos,
qual de nós alguma vez regressa?

Com o tempo requeremos cuidados especiais.
Vejamos: o sentido para a fuga leva-nos
a desenvolver dotes inesperados:
a doce aprendizagem de como
abrir fechaduras,
roubar automóveis para ir ter com a namorada.

Chamam-se delírios as interrogações?
De todas as de seda
esta outra de ganga: poderemos amar sem ser vistos,
ansiando sem Platão que qualquer compromisso
se esboroe à nossa passagem,
assim um vento sem advertências:

é de ti que falo
há quanto tempo tentas resistir
e caminhas sozinha pela cidade?
Acaso ainda não descobriste ser o sangue
um código, uma profissão de fé
inexistente?

Jorge Gomes Miranda,
Postos de Escuta,
Presença

ESTATÍSTICA

A soma do número de mortos

por acidente nas estradas,
mais a dos vitimados por
causas naturais,
a multiplicar pelos que sucumbem
por negligência nos hospitais,
e pelos «suicidados» nas esquadras
ou nas prisões,
dá como resultado um país?

A soma do número dos despedidos
por falência fraudulenta
das empresas,
mais a dos que o foram
por justa causa,
a multiplicar pelos que sobrevivem
do trabalho precário,
e pelos que andam ainda
à procura do primeiro emprego,
dá como resultado um país?

A soma do número...

Jorge Gomes Miranda

Postos de Escuta,

Presença

Underwear

I didn’t get much sleep last night
thinking about underwear
Have you ever stopped to consider
underwear in the abstract
When you really dig into it
some shocking problems are raised
Underwear is something we all have to deal with
Everyone wears
some kind of underwear
Even Indians wear underwear
Even Cubans
wear underwear
The Pope wears underwear I hope
The Governor of Louisiana wears underwear
I saw him on TV
He must have had tight underwear
He squirmed a lot
Underwear can really get you in a bind
You have seen the underwear ads for men and women
so alike but so different
Women’s underwear holds things up
Men’s underwear holds things down
Underwear is one thing
men and women do have in common
Underwear is all we have between us
You have seen the three-color pictures
with crotches encircled
to show the areas of extra strength
with three-way stretch
promising full freedom of action
Don’t be deceived
It’s all based on the two-party system
which doesn’t allow much freedom of choice
the way things are set up
America in its Underwear
struggles thru the night
Underwear controls everything in the end
Take foundation garments for instance
They are really fascist forms
of underground government
making people believe
something but the truth
telling you what you can of can’t do
Did you ever try to get around a girdle
Perhaps Non-Violent Action
is the only answer
Did Gandhi wear a girdle?
Did Lady Macbeth wear a girdle?
Was that why Macbeth murdered sleep?

And the spot she was always rubbing -
Was it really her underwear?
Modern anglosaxon ladies
must have huge guilt complexes
always washing and washing and washing
Out damned spot
Underwear with spots very suspicious
Underwear with bulges very shocking
Underwear on clothesline a great flag of freedom
Someone has escaped his Underwear
May be naked somewhere
Help!
But don’t worry
Everybody’s still hung up in it
There won’t be no real revolution
And poetry still the underwear of the soul
And underwear still covering
a multitude of faults

in the geological sense -
strange sedimentary stones, inscrutable cracks!
If I were you I’d keep aside
an oversize pair of winter underwear
Do not go naked into that good night
And in the meantime
keep calm and warm and dry
No use stirring ourselves up prematurely
‘over Nothing’
Move forward with dignity
hand in vest
Don’t get emotional
And death shall have no dominion
There’s plenty of time my darling
Are we not still young and easy?
Don’t shout.

Lawrence Ferlinghetti

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Recolher

É meia noite
E a nossa morada silenciosa escuta
Os últimos ruídos dos que vão para casa.
Deitados ao lado das cortinas corridas
Gostávamos de saber
Porque é que eles voltam.

Ian Hamilton,
Cinquenta Poemas,
Edição Bilingue,
Tradução de Nuno Vidal,
Livros Cotovia

Poeta

«A luz sucumbe; o mundo sorve a escuridão invernosa
E por todo o lado
Vastas cidades abandonam-se aos seus fantasmas...»
O poeta, à escuta de outras vidas
Como a sua, recomeça " E é tudo
Delírio...»

Ian Hamilton,
Cinquenta Poemas,
Edição Bilingue,
Tradução de Nuno Vidal,
Livros Cotovia

Salmo T.

O mais céptico de todos
é o Tempo,
Que com Nãos faz Sins
e com ódio amor
e o contrário.
E se o rio não remonta à nascente,
e se a maçã caída não salta
e se reúne com o ramo
é porque te falta paciência para crê-lo.

Paul Valéry
Poemas, Visor

Tradução da minha responsabilidade
a partir da versão espanhola

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Suicídio – poema 3 e 5



A vida amou a morte
mais do que havia
para morrer.

Apaguei os pensamentos
na espuma da pele.

Abandonar o paraíso,
a única forma
de não esquecê-lo.

Fabrício Carpinejar

“As Solas do Sol”
(Editora Bertrand Brasil, 1998)

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Mario Quintana por Mario Quintana

Nasci em Alegrete, em 30 de Julho de 1906. Creio que foi a principal coisa que me aconteceu. E agora pedem-me que fale sobre mim mesmo. Bem! eu sempre achei que toda confissão não transfigurada pela arte é indecente. Minha vida está nos meus poemas, meus poemas são eu mesmo, nunca escrevi uma vírgula que não fosse uma confissão. Há ! mas o que querem são detalhes, cruezas, fofocas… Aí vai ! Estou com 78 anos, mas sem idade. Idades só há duas : ou se está vivo ou morto. Neste último caso é idade demais, pois foi-nos prometida a eternidade.
Nasci do rigor do inverno, temperatura : 1 grau; e ainda por cima prematuramente, o que me deixava meio complexado, pois achava que não estava pronto. Até que um dia descobri que alguém tão completo como Winston Churchill nascera prematuro – o mesmo tendo acontecido a Sir Isaac Newton ! Excusez du peu...Prefiro citar a opinião dos outros sobre mim. Dizem que sou modesto. Pelo contrário, sou tão orgulhoso que nunca acho que escrevi algo à minha altura.
Porque poesia é insatisfação, um anseio de auto-superação. Um poeta satisfeito não satisfaz. Dizem que sou tímido. Nada disso ! sou é caladão, introspectivo. Não sei por que sujeitam os introvertidos a tratamentos. Só por não poderem ser chatos como os outros ?Exatamente por execrar a chatice, a longuidão, é que eu adoro a síntese.
Outro elemento da poesia é a busca da forma (não da forma), a dosagem das palavras. Talvez concorra para esse meu cuidado o fato de ter sido prático de farmácia durante 5 anos. Note-se que é o mesmo caso de Carlos Drummond de Andrade, de Alberto de Oliveira, de Erico Veríssimo – que bem sabem ( ou souberam) , o que é a luta amorosa com as palavras.

( texto escrito pelo poeta para a revista Isto É de 14/11/1984 )

domingo, 2 de agosto de 2009

Fazer o quê de todo este mel,
Do crescendo das tardes em ouro, pólen e Verão,
Se a vida é, afinal, sempre e só
Dos outros, afinal, sempre e só
Transformada em vala comum,
Onde tentar o bem nosso
Pelo bem dos outros
Já não é sequer o mal menor,
Cansados de mais, brutos de mais,
Nós mesmo de mais,
Sempre morais numa impossível
E exaltada falta de paciência,
Numa pressurosa falta de ternura,
Nós sempre tão corredios,
Sardónicos até nos estertores,
Impérvios a essa música que nos tece,
Perdidos em pleno espaço?
Há ainda um risco para nos salvar
De toda esta segurança,
do geométrico, bancário, ergonómico,
Acomodar-se da alma,
Do espírito flácido e famélico,
Algo que nos possa restituir
O gosto dos dias,
Esse que teremos na boca
Em hora extrema, ainda o gosto dos dias?

Nuno Rocha Morais,
Últimos Poemas,
Quasi, 2009

terça-feira, 28 de julho de 2009

Os Loucos

Há vários tipos de louco.

O hitleriano, que barafusta.
O solícito, que dirige o trânsito.
O maníaco fala-só.

O idiota que se baba,
explicado pelo psiquiatra gago.
O legatário de outros,
o que nos governa.

O depressivo que salva
o mundo. Aqueles que o destroem.

E há sempre um
(o mais intratável) que não desiste
e escreve versos.

Não gosto destes loucos.
(Torturados pela escuridão, pela morte?)
Gosto desta velha senhora
que ri, manso, pela rua, de felicidade.

António Osório

terça-feira, 16 de junho de 2009

MANIA DO SUICÍDIO

Às vezes tenho desejos
de me aproximar serenamente
da linha dos eléctricos
e me estender sobre o asfalto
com a garganta pousada no carril polido.
Estamos cansados
e inquietam-nos trinta e um
problemas desencontrados.
Não tenho coragem de pedir emprestados
os duzentos escudos
e suportar o peso de todas as outras cangas.
Também não quero morrer
definitivamente.
Só queria estar morto até que isto tudo
passasse.
Morrer periodicamente.
Acabarei por pedir os duzentos escudos
e suportar todas as cangas.
De resto, na minha terra
não há eléctricos.

Rui Knopfli
Memória Consentida
(INCM, 1982)

quarta-feira, 10 de junho de 2009

O meu pai

bebo muito vinho
bebo muita aguardente
ressono
só sei berrar
não me lavo
sou porco
não tenho amigos
não sei dar educação aos meus filhos
sou tudo um pouco graças a deus

João Almeida

in Glória e Eternidade, Teatro de Vila Real, 2009

Uma Coca-Cola Contigo

é ainda melhor que uma viagem a San Sebastian, Irun,Hendaye, Biarritz, Bayonne
ou ficar enjoado na Travessera de Gracia em Barcelona
em parte porque nessa camisa laranja tu pareces um São Francisco melhor e mais feliz
em parte porque eu gosto tanto de ti, em parte porque tu gostas tanto de iogurte
em parte por causa das tulipas laranja fluorescente contra a casca branca das árvores
em parte pelo segredo que nos chega ao sorriso perto de gente e de estatuária
é difícil quando estou contigo acreditar que existe alguma coisa tão parada
tão solene tão desagradável e definitiva como estatuária quando bem na frente delas
na luz quente de Nova Iorque às quatro da tarde nós estamos indo e vindo
de um lado para o outro como a árvore respirando pelos olhos de seus nós

e a exposição de retratos parece não ter nenhum rosto, só tinta
de repente surpreendes-te que alguém se tenha dado ao trabalho de pintá-los
olho-te
e prefiro de longe olhar para ti do que para todos os retratos do mundo
excepto talvez às vezes o Cavaleiro Polaco que de qualquer maneira está no Frick
aonde graças a Deus tu nunca foste de modo que eu posso ir contigo pela primeira vez
e o facto de te moveres com tal beleza mais ou menos dá conta do Futurismo
assim como em casa nunca penso no Nu Descendo a Escada ou
num ensaio em algum desenho de Leonardo ou Miguel Ângelo que costumava deslumbrar-me
e o que adianta aos Impressionistas tanta pesquisa
quando eles nunca encontraram a pessoa certa para ficar perto de uma árvore quando o sol baixava
ou por sinal Marino Marini que não escolheu o cavaleiro tão bem
quanto o cavalo acho que eles todos deixaram de ter uma experiência maravilhosa
que eu não vou desperdiçar por isso estou a falar-te do assunto

Frank O'Hara

(tradução caseira)

domingo, 7 de junho de 2009

Casamento de Bangkok

disse-me

aprendi o essencial de tailandês
para não me perder na rua
saber o que vou comer nos restaurantes
dizer-lhe que a amo

mas não o suficiente para
lhe explicar o porquê

por isso
aponto com o olhar as árvores do pomar
são o nosso pequeno resguardo
de beleza

seguimos o perfume
ela sabe

Miguel-Manso in
Contra a Manhã Burra,
Mariposa Azual,2009

sexta-feira, 5 de junho de 2009

Mas agora que vai descer a noite na minha vida

Triste de mim mais triste que a tristeza
triste como a mão que segura o copo
como a luz do farol esgaçando a névoa
triste como cão manco
deixado na serra pelos caçadores

.....

triste como uma puta alentejana
num bar de Ourense
que me viu à cerveja e lesta
me chamou compadre
vozes que a gente colecciona

...

triste e já sem nenhum reparo
a fazer à metafísica
senão que é um défice
porventura
do córtex cerebral

Fernando Assis Pacheco in

Respiração Assistida,
Assírio & Alvim, 2003

quarta-feira, 3 de junho de 2009

uma razão de viver

Sei que o mundo é mais forte do que eu. E para resistir ao seu poder só me tenho a mim. O que já não é pouco. Se o número não me esmagar, sou, também eu, um poder. E enquanto me for possível empurrar as palavras contra a força do mundo, esse poder será tremendo, pois quem constrói prisões expressa-se sempre pior do que quem se bate pela liberdade. E no dia em que só o silêncio me restar como defesa, então será ilimitado, pois gume algum pode fender o silêncio vivo.
É este o meu único consolo. Sei que as recaídas no desespero serão profundas e numerosas, mas a lembrança do milagre da libertação leva-me como uma asa a um fim que me inebria: um consolo que seja mais do que apenas isso, e mais vasto que uma filosofia: que seja, enfim, uma razão de viver.

Stig Dagerman
in
A Nossa Necessidade de Consolo
é Impossível de Satisfazer,
Fenda

terça-feira, 2 de junho de 2009

Poema

Súbitos mergulhadores descendo nas águas inimigas
Com os olhos fitos e os peitos esmagados,
Descendo devagar, ao som lento de segundos vertiginosos como séculos,
Todos nós vos acompanhamos e juntamos todas as nossas forças na mesma meditação.
Aqui, da terra firme,
Entre nuvens e terra,
Entre o suor e o orvalho,
Esperamos o termo com todas as nossas forças.
E sabereis a nossa mensagem:
Só há saída pelo fundo.

Cristovam Pavia
de 35 Poemas, 1959

ABUTRE

São Tomás de Aquino pensou
Que os abutres eram lésbicos
E que o vento os fecundava.
Se procuras os factos da vida,
Os intelectuais papistas
Podem ser muito enganadores.

Kenneth Rexroth
Tradução de Lord of Erewhon

sexta-feira, 29 de maio de 2009

Na Casa Mágica

Fantasmas psicológicos
e livros.
Acendo a rádio.
O locutor grita
diz disparates para manter a linha.
Ela consome contra os ladrões
eu nem consumo nem sou ladrão.
Sou outra pessoa agora.
Chupo um cigarro que me arranha a garganta.
Voga música de plástico.
Alheio escrevo folhas de papel.
Construo um papel de parvo, de observador
O poeta sente após o acto.

Tiago Gomes in
Auto-ajuda, Mariposa Azual,
2009
«O que acontece no mundo é que toda a gente que nasce, nasce de alguma maneira poeta, inventor de qualquer coisa que não havia no mundo ainda, antes deles nascerem. E inteiramente individual. O Homem não nasce para trabalhar, o Homem nasce para criar, para ser o tal poeta à solta. E dar ele a sua mensagem particular ao mundo, fazer a obra que pode fazer e porque ele é único, será a única obra daquele tipo no mundo.»

Agostinho da Silva

sexta-feira, 22 de maio de 2009

A história de um palhaço

"A vida corta as ilusões, endurece e ai daqueles que persistem em sonhar e em viver com o feitio que em ideal se talharam; pobres dos que são tenazes em perseguir a quimera, sem querer ver as duras pedras do caminho! ... Pouco a pouco todos vêem que devem esconder o seu sonho para quando só, se não lho despedaçam risos. Cada um, porque não é livre e não pode seguir a escarlate quimera, tem uma alegria feroz em rasgar a dos outros. Quem são os fortes? Os miseráveis, as mulheres que se vendem, os que são o que são e não fingem. Na vida, na literatura, na amizade, a mentira se estatela, a ponto de ser necessária toda uma ciência para decifrar a alma - a psicologia. Todos nós temos frases já feitas com que esconder o que pensamos e o que sentimos: é por isso que conversar me fatiga, e que eu só estou bem sozinho."

Raul Brandão in
A história de um palhaço,

quinta-feira, 14 de maio de 2009

ÚLTIMO TESÃO

Alombo contigo há uma porção de anos

e vou-te dizer és um chato

não tens ponta de paciência

para a vida nem para ti próprio



já te ouvi discursos a mandar vir

já te carreguei às costas

bêbedo como um Baco de aldeia

mijando as ceroulas

és um adolescente retardado

faltou-te sempre a quadra do bom senso



vez por outra um livrinho

de versos vez por outra nada

qualquer um do teu tempo

está bastante melhor do que tu

deputado administrador de empresa

ministro da maioria

puta (alguns chegaram a isso)



só tu meu inocente brincas com a neta

açulas o cão pedindo

à família que te ature

o tipo um dia destes morde-te

que é para aprenderes



mas aqui entre amigos

vou-te dizer também

uma coisa importante não cedas

à tentação de mudar

fica nesta pele que é tua



como é que tu escrevias

merdalhem-se uns aos outros



o país mete dó



guarda o último tesão

para mandares

meia dúzia de canalhas à tabua



Lisboa

5/6/9-VII-95

Fernando Assis Pacheco in
Respiração Assistida,
posfácio de Manuel Gusmão,
Assírio & Alvim, Lisboa, 2003

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Soma

Não discuto se sou feliz ou não.
Mas de uma coisa faço por lembrar-me sempre:
Que nessa grande soma - a deles, que eu detesto -
De tantas e tantas parcelas, não sou
Uma delas. Eu nunca fui contado
Para a soma total. Esta alegria basta.



Constantino Cavafy in
90 e mais quatro poemas, trad. Jorge de Sena

A QUANTAS ANDO

as minhas botas
cães de fila, um mastim branco
e um dono insano

neste ofício
é preciso perder

Highgate, vinte e sete de Maio
ouvem-se os sinais objectivos de um corvo
as ervas também e os arbustos
alimentados a nitrato

à entrada pagamos qualquer coisa
em moedas pequenas
moedas em todo o caso
a Preciosa Maria said to the lady
that Karl Marx devia estar às voltas na tumba

nesse mesmo dia ao que dizes
os new order tocaram atmosphere no super bock
super rock e parece que houve choro e spleen

encostei-me não me lembro onde
e fiquei a olhar a cabeça de marx
o cemitério é amigo e explica muitas coisas

João Almeida
in Glória e Eternidade,
Teatro de Vila Real

sexta-feira, 8 de maio de 2009

Táctica estética ou estava difícil

Segue-se uma estética
para chegar ao íntimo das coisas
e sugar-lhes o sumo
ou antes, o néctar,
ou melhor, o licor,
quero dizer, o elixir,
isto é, a essência,
porra, a poesia.

domingo, 19 de abril de 2009

Arado



I

A mecânica do arado é rudimentar,
clarividente e sóbria. Nada tem
em demasia: o que a função requer
e nada mais.

No perfil eficiente do arado
há qualquer coisa de navalha, qualquer coisa
de falo em riste, em transe de fecundar.

De facto, noutros tempos,
era o arado que rasgava a terra,
fazia dela um ventre aconchegado -
cenário certo para o deflagrar da vida
que vai dentro das sementes.

Isto foi no tempo em que havia agricultura
nos gestos quotidianos dos homens
e das mulheres.

II

O arado ainda está no curral,
encostado a um canto.

Já ninguém o usa, à excepção
das galinhas que se empoleiram nele
quando chega a hora de cismarem.

Por enquanto tem sido poupado ao fogo,
como se no seu futuro estivesse
ainda escrito um último regresso
às genésicas tarefas da lavoura.

Mas ele sabe que nada disso está escrito.
Melancólico, antecipa
a hora da corrosão.

III

Mas o arado perpetua-se em mim.
De facto, em horas de arriscada exaltação,
gosto de pensar nestes versos como sendo
um arado com que rasgo outras terras
mais voláteis e menos aráveis,
e nelas julgo deixar alguma semente.

Pura ilusão.
Nem as tais terras se deixam rasgar
assim facilmente,
nem o meu arado tem vocação de vida.

De modo que retorno ao arado
que de facto arou.

Ei-lo cabisbaixo no quintal.
Não sei de mais lastimosa coisa
do que um arado ferido de desuso,
encostado a um canto,

poleiro improvisado,

pasto de ferrugem e carcoma,

lenha em breve.

A. M. Pires Cabral in
Arado, Livros Cotovia

sábado, 18 de abril de 2009

o meu carteiro, adoro-o

o meu carteiro, adoro-o
se me traz facturas saldos bancários
zero na conta a ordem
menos que zero na conta a prazo
poupanças nada e
crédito disparando
faz várias perninhas ali mesmo
no átrio em cima do tapete
desculpando-se com habilidades várias
de modo que eu
ansiosa pelo seu toque
visto-me como quem não quer, mas quero
e peço-lhe mordiscando-lhe a orelha: por obséquio
mais papelada amanhã
dessa que me agiganta até
transformar-me em nada
onde nos desencontraremos

Bénédicte Houart, in
Aluimentos, Livros Cotovia

quinta-feira, 2 de abril de 2009

Ofício de Suicidas

Poucas as palavras, pequenos seus desígnios,
nomeiam sempre realidades banais,
triviais signos, factos consumados,
e, ao fundo, sórdida presença da morte.
Ofício melancólico, construir estas grades,
estas escassas lápides do tempo que nos passa,
ofício de suicidas, tentar reter
o rasto de luz em sílabas de sombra.


Juan Luis Panero
in
Poemas, Tradução e Prefácio
de Joaquim Manuel Magalhães,
Relógio d´Água

sábado, 31 de janeiro de 2009

Soneto

Rudes e breves as palavras pesam
mais do que as lajes ou a vida, tanto,
que levantar a torre do meu canto
é recriar o mundo pedra a pedra;
mina obscura e insondável, quis
acender-te o granito das estrelas
e nestes versos repetir com elas
o milagre das velhas pederneiras;
mas as pedras do fogo transformei-as
nas lousas cegas, áridas, da morte,
o dicionário que me coube em sorte
folheei-o ao rumor do sofrimento:
ó palavras de ferro, ainda sonho
dar-vos a leve têmpera do vento.

Carlos de Oliveira in
A Leve Têmpera do Vento,
Quasi